Reflexões sobre o Dia Nacional da Visibilidade Trans

Terça, 31 de Janeiro de 2023 - 17:59

Para fechar o mês da Visibilidade Trans, após variadas atividades feitas pela Subsecretaria de Políticas da Diversidade visando à conscientização principalmente para a atenção e a importância da data, trazemos ponderações da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) a fim de esclarecer e frisar quão sérias são as falas e as reivindicações dessa população invisível.

 

Anexamos também um estudo atualizado feito pela Antra para que todos leiam e se conscientizem do quadro acinzentado que nosso país ocupa em razão da exclusão das pessoas trans.

 

O estudo revela que o Brasil teve 131 pessoas trans assassinadas em 2022, correspondendo a uma média de 11 assassinatos por mês, segundo relatório anual da Antra. As vítimas foram 130 mulheres trans/travestis e um homem trans. Pelo 14º ano, o país continua sendo o que mais mata pessoas trans no mundo.

 

A mais jovem tinha 15 anos e foi brutalmente morta: Ester foi encontrada decapitada e com um dedo decepado em Natal/RN, em outubro. Ela era de Olinda/PE. Um homem de 26 anos confessou o crime, segundo a polícia, mas responderá em liberdade.

 

O número de assassinatos em 2022 ficou abaixo dos 140 contabilizados no ano anterior, mas acima da média da série histórica iniciada em 2008, que é de 121 mortes por ano.

 

A série inclui dados contabilizados pelo Grupo Gay da Bahia, até 2016, e pela Antra, que começou a produzir um dossiê dos assassinatos em 2017.

 

A associação explicou que o número de assassinatos pode ser maior porque não existem dados oficiais sobre a violência contra essa população no Brasil.

 

Já o perfil das pessoas trans assassinadas no Brasil é de mulheres trans/travestis negras e que vivem da prostituição.

 

"Era uma pessoa tão boa", desabafa o pai da adolescente trans de 16 anos morta a facadas na Bahia.

 

A oito dias do Dia da Visibilidade Trans (29 de janeiro), a travesti Quelly da Silva foi assassinada em Campinas/SP e teve o coração arrancado. O homem apontado como autor do crime guardou o órgão e se justificou dizendo que ela era um demônio.

 

Para Keila Simpson, presidente da Antra, ações como essa não são crimes comuns e, sim, de ódio.

 

Em geral a pessoa trans não morre com um tiro letal. São 12 tiros, não sei quantas facadas. A Quelly teve o coração extirpado e guardado como troféu.

 

“Essa violência só vai diminuir quando houver uma legislação que puna com a gravidade devida”, afirma Keila.

 

Em 2018, segundo a Antra, 163 pessoas trans foram mortas. Em muitos dos casos com requintes de crueldade como o cometido contra Quelly. O medo de sofrer uma violência só por ser quem se é faz parte do dia a dia dos transexuais.

 

“Tenho pânico de ser assaltada e virar algo pior se o criminoso me reconhecer como trans”, diz Bruna Benevides, secretária de Articulação Política da Antra.

 

Considerada incapaz

 

A segunda sargento da Marinha Bruna, ao assumir sua condição de mulher transexual, foi considerada incapaz de exercer sua função e encaminhada para aposentadoria compulsória, mesmo com 21 anos de serviço prestados para as Forças Armadas.

 

No final de 2018, na Justiça, ela reverteu a decisão e aguarda para retomar o trabalho. “Estamos submetidas a violências nos campos físico e psicológico. Somos achincalhadas ao passar na rua, fazendo tarefas cotidianas como ir à padaria. Falam para a gente ouvir mesmo. Não respeitam nosso nome social, somos tiradas de banheiros públicos. Acontecimentos como esse minam a saúde mental”, fala Bruna.

 

Para a empresária e advogada Márcia Rocha – a primeira advogada travesti a ter o nome social no Cadastro Nacional dos Advogados da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) –, o fim da violência passa pelo fim do preconceito contra os transexuais. “É preciso mudar a maneira como a sociedade vê a pessoa trans. É um indivíduo que pode produzir, contribuir como outro qualquer”, afirma Márcia, que é ainda idealizadora e coordenadora do Transempregos, que faz a inserção de transexuais no mercado de trabalho e promove a conscientização contra a discriminação.

 

“Nós trans nascemos prostitutas no imaginário da sociedade”, comenta Bruna Benevides. Mas esse grupo em situação de vulnerabilidade não representa toda a população transexual. “Vi casos de pessoas muito qualificadas que, ao se assumirem, eram mandadas embora. Conheci uma com mestrado e doutorado que trabalhava como faxineira”, conta Márcia Rocha.

 

Naturalizar a presença de transexuais no espaço público é, na opinião das ativistas ouvidas neste texto, a razão principal da existência do Dia da Visibilidade Trans.

 

“Quando acontece um assassinato cruel e bárbaro como esse de Campinas, a gente compreende que nossa luta está muito no início. É preciso mais dias de visibilidade para colocar na cabeça da sociedade como um todo que essa população merece ser olhada e respeitada como é, dentro de suas individualidades”, finaliza a presidente da Antra.

 

Fontes: G1/Antra, Blog Natura, Subsecretaria de Políticas da Diversidade (SPD)/subsecretária Ana Marques.

 

Segue abaixo a história de vida de uma mulher trans que é muito especial para a Subsecretaria de Políticas da Diversidade. É um relato repleto de emoções, lições e um percurso lindo e promissor. Cremos tanto em você, Luiza. Voa alto!

 

Carta aberta

 

A história de Luiza, uma mulher transexual em construção

 

"Parece clichê, mas a minha história começou na infância. Eu fui uma criança planejada pela família, o único menino. Meu pai deixou o bar para ir me ver nascer. Mal sabiam que a frustração deles também seria o orgulho no futuro.

 

Desde muito nova, acredito que dos meus cinco aos sete anos, eu já sentia que tinha algo diferente comigo e não entendia. Vestia roupas das minhas irmãs e, numa das vezes, minha mãe viu e me repreendeu. Levei uns tapas. Em outra, foi meu pai que me repreendeu por parar com a mão na cintura. Os amigos dele riam da situação até certo momento em que levei uma tapa na mão enquanto estava naquela postura.

 

Durante o período escolar, acredito que foi no que mais me senti bem. Estava sempre rodeada de amigas (na época ainda menino) - uma rotina "normal" para um menino que achava ser apenas "gay."

 

Dos oito aos dez, comecei a reparar em meninos: meninos na rua, meninos na escola e me perguntava por que não sentiam atração por mim. Eu não conseguia compreender ou até perceber que havia outros meninos iguais a mim.

 

Dos 11 aos 13 anos, decidi morar com meu avô no interior. Foi a minha melhor fase da adolescência. Eu podia ser eu, tinha amigos meninos ao invés de meninas. Cheguei a ter um pequeno relacionamento com uma menina, porém não deu certo. Logo me apaixonei pelo meu melhor amigo e minha ex virou minha melhor amiga e confidente, uau.

 

Meu avô começou a notar as diferenças no meu comportamento e começou a me repreender, querendo sempre que ficasse na presença dele. Durante um tempo me senti em cárcere privado, pois na época eu não tinha celular e me comunicava por carta com a minha mãe, que vivia em São Paulo. Essas cartas pararam de chegar. Ele já não trazia novidades e nada do que eu pedia nas cartas. Notei que ele não estava entregando as cartas. Desesperei-me e num momento de surto, me refugiei em uma vizinha que me ajudou por uns seis meses. Ela preocupada com a minha situação, decidiu entrar em contato com a minha mãe e me mandou de volta para São Paulo. Minha melhor fase da infância acabou ai.

 

Chegando a São Paulo, me assumi "gay" abertamente para minha mãe, que na época ainda era casada com meu pai. Ela não reagiu muito bem, mas disse que meu pai estava transtornado. Na verdade era o contrário. No fundo, ambos sempre souberam, porém meu pai reagiu melhor que minha mãe.

 

Eles se separaram meses ou anos depois, não me recordo, porém o convívio com a minha mãe, que era perfeito, se tornou o meu pior pesadelo. Em tudo ela me repreendia. Não tinha mais o mesmo afeto.

 

Entre 14 e 17 anos, comecei a fazer bicos em tudo que aparecia para mostrar a minha mãe que independente do que eu sentia/gostava/era, não me impedia em nada. Já fui planfleteira, trabalhei em lava rápido, balconista, barman, vendedora de cosméticos e de lingeries, sempre conciliando com os estudos e sempre tirando notas boas. Mesmo assim, minha mãe já não dava mais o mesmo valor.

 

Com meu pai, por outro lado, eu conseguia conversar. Ele gostava de me ver feliz. E eu podia dançar, rir e contar alguns casos. Ele ria e falava para eu me cuidar apenas.

 

Entre alguns pequenos namoros e paqueras, aos 17, conheci um homem maravilhoso que passou a estar comigo por dez anos. Durante meu processo de mudança, ele me acompanhou. Tiveram muitos altos e baixos, términos e voltas, mas foi essencial.

 

Aos 18 me mudei e fui morar sozinha. Já estava trabalhando registrada. Fiquei três anos morando sozinha e por um querer do destino, voltei a morar com a minha mãe. Na época, ela estava mais conformada, me respeitando, embora ainda não me aceitasse.

 

Aos 21, num momento de impulso e de querer sair daquele mundo que não me pertencia, de querer sair daquele corpo, no dia 3/12/2017 tomei minha primeira injeção de estradiol por conta própria. Foi libertador. Chorei, tremia e sorria. Comecei a tomar os medicamentos que futuramente, através do Centro de Testagem e Acolhimento (CTA), descobri que não estavam errados, mas não eram os medicamentos apropriados para meu corpo e idade, entre outros fatores.

 

Passados alguns meses, eu sentia a felicidade e as poucas mudanças acontecendo do lado de fora. E eu podendo expor meu eu, de dentro para fora.

 

Todo meu processo de mudança, levei de forma sábia, sem forçar, sem me expor, sem exageros, em segredo e em silêncio. Deixei o tempo agir. Usava meu nome de batismo sem problemas e aconselho as novas meninas o mesmo. Mesmo tomando meus medicamentos, usava roupas masculinas e colocava uma peça ou algum detalhe feminino que me fizesse sentir bem. Ainda que eu soubesse onde queria chegar e quem eu era, não forçava, pois não queria sofrer chacotas e represálias. Queria sentir respeito e reconhecimento pelos feitos da minha vida.

 

Quando contei para minha mãe, ela já não era mais a mesma da época da adolescência. Ela não ficou surpresa. Apenas questionou se eu tinha certeza do que eu queria e ficou preocupada em relação a empregos e com o mundo lá fora, mas senti que já tinha o apoio dela. Nessa época, havia feito o curso de comissário e essa era uma das tristezas dela. Ela chegou a questionar sobre o curso e o aeroporto. Apenas respondi: mãe eu vou conseguir. Posso não mudar o mundo, mas eu vou conseguir.

 

Ao longo de meu processo, consegui emprego na área administrativa, em um segundo emprego em um restaurante, ganhei promoção para gerente e foi lá que descobri e aceitei como gostaria de ser chamada. Uma letra no final do meu nome mudaria tudo "A". Muitos dos colegas de trabalho me respeitam muito, me apoiaram. Meu segundo emprego foi meu segundo mundo. Comecei a usar brinquinhos, roupas mais justa, deixei o cabelo crescer e tudo foi se transformando. Já dizia Antoine-Laurent de Lavoisier "na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma” e foi exatamente assim comigo.

 

Depois do restaurante entrei em sociedade com uma associação de proteção veicular, onde cresci profissionalmente e como mulher que já tinha me tornado. Embora exigente como sempre fui, as minhas mudanças ainda não estavam de acordo como eu queria, mas sempre deixei o tempo agir.

 

Tive acompanhamento do CTA por um tempo, o qual foi muito importante, embora o serviço estivesse cada vez mais precário, não desisti.

 

Resumidamente, tenho muitos sonhos a serem realizados. Tive que trancar minha faculdade de gestão financeira, A mudança de nome em todos os meus documentos aconteceu em janeiro de 2020. Meu ex virou o meu melhor amigo, apoiador da minha vida. É a pessoa que ajuda em tudo que pode, sendo recíproco da minha parte. Tornei-me uma empreendedora em um ramo totalmente masculino: tenho uma empresa de rastreamento veicular que concilio com meu trabalho de quatro horas para uma companhia alemã no aeroporto, como assistente pessoal de primeira classe. Ainda não me tornei comissária, mas consegui e me formar e trabalho na área em que recebi promoção.

 

Chamo-me Luiza, 27 anos.

 

Imagem: Divulgação